Entre os temas debatidos com grande intensidade nos últimos tempos, cabe mencionar a reforma tributária, o que nos leva a traçar algumas ponderações, especialmente, no tocante ao setor do agronegócio, uma vez que a suposta alíquota padrão para o IBS e a CBS, ainda a definir, chegaria ao mais alto patamar, em comparação com outros países, por força dos “regimes de exceções”.
Neste sentido, entendemos ser relevante esclarecer que a cadeia do agronegócio, em especial, mas não somente a produção de alimentos, forçosamente, deveria — como deve — ter um tratamento diferenciado e favorecido, com reduzida tributação, não sendo o principal alvo para a obtenção de receita pelo Estado [1].
Não é de hoje que temos, sempre que possível, sustentado e reforçado que o setor do agronegócio não tem qualquer privilégio do ponto de vista fiscal, havendo somente um imperativo por suas peculiaridades e previsão constitucional de um tratamento diferenciado e favorecido.
Isto porque, como é de conhecimento, a ampla cadeia possui diversas peculiaridades como, por exemplo, aspectos climáticos; pragas; modo de produção, dada a impossibilidade de se colher e plantar quando se queira; produtos perecíveis; sujeição à geopolítica; variação cambial, entre outros aspectos. Muitos destes pontos, portanto, voltados ao ciclo biológico e conhecida teoria da agrariedade de Antonio Carrozza [3].
Além destes aspectos próprios do exercício da atividade econômica que a diferenciam da maioria dos setores, gerando a necessidade de um tratamento diferenciado, a própria Constituição Federal reconhece esta necessidade.
A atuação do agronegócio tem como uma das principais finalidades a produção de alimentos, o que lhe dá, no texto constitucional, um regime jurídico à luz dos direitos fundamentais, começando pelo artigo 1º, uma vez que entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, está exatamente a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana tem completa conexão com a produção de alimentos, na medida em que é partir da alimentação que podemos reconhecer ao ser humano, na sua mais pura essência, a existência digna, estando no centro do que chamamos de mínimo existencial. O alimento permite a existência e manutenção da vida, configurando um instrumento imprescindível para que outros direitos fundamentais como a liberdade, por exemplo, seja exercida e concretizada.
Daí porque, configura a produção de alimentos um pressuposto para a própria existência de um Estado Democrático, já que a escassez deste, não somente leva risco à saúde e, por conseguinte, a perda da dignidade e vida de qualquer ser humano, mas também a própria sobrevivência da sociedade, podendo levar à instabilidades institucionais, políticas, econômicas e sociais, sobretudo, à guerra.
A proteção constitucional, no entanto, não se dá somente em razão da dignidade da pessoa humana, havendo ainda do ponto de vista dos direitos fundamentais a proteção à vida (artigo 5º, “caput”), direito social à alimentação (artigo 6º) e saúde (artigo 196).
Este tratamento diferenciado e favorecido, porém, não está estruturado somente no fato de que a produção de alimentos tem por finalidade primordial concretizar direitos fundamentais de alta envergadura, sendo instrumento para o exercício de outros, mas também por ter o constituinte originário, expressamente, ao prever na Constituição Federal um capítulo sobre a Política Agrícola, reconhecer, no artigo 187, inciso I, que ela “será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: I – os instrumentos creditícios e fiscais”.
Embora seja um dispositivo pouco estudado e aplicado, tem força constitucional, impondo sua observância ao determinar que o Estado irá planejar e executar a política agrícola tendo em conta inclusive instrumentos fiscais. Isto nos revela a nítida pretensão da Constituição de que o Estado fomente e incentive a cadeia do agronegócio, inclusive, por meio de incentivo fiscais, permitindo o entendimento de que será um setor onde os aspectos fiscais serão regulados com outra finalidade, ou seja, de promoção, fomento, incentivo e não de pura pretensão arrecadatória.
Interpretação esta que está em total harmonia com os aspectos acima descritos a respeito de ser o segmento voltado à produção de alimentos, apto, assim, a concretizar direitos fundamentais, que, em regra, devem ser interpretados e aplicados visando à máxima efetividade.
É dentro de todo este contexto que trazemos a questão reforma tributária e a tributação reduzida ou mínima dos alimentos — e cadeia —, tal como se pretende para a cesta básica.
Atualmente, apesar de não ser plena, existe na legislação federal a busca por uma tributação reduzida de produtos relacionados à cesta básica no IPI e também para PIS/Cofins (artigo 1º da Lei nº 10.925/2004) sob a perspectiva da União, além do ICMS por meio dos Estados, especialmente, por meio dos Convênios Confaz 139/93 e, posteriormente, 128/94.
Com isso, o que se pretende afirmar é que o reconhecimento de uma tributação reduzida, principalmente, para os produtos básicos e de essencial acesso a todos os seres humanos para fins de alimentação (cesta básica), configura determinação constitucional tida como direito fundamental de observância obrigatória, inclusive, na hipótese de reforma ou emenda à constituição, tendo em vista que inexiste a possibilidade de se abolir ou restringir direitos e garantias individuais (artigo 60, § 4º).
A carga tributária mínima e reduzida aos alimentos — e cadeia — é imperativo constitucional à luz da Constituição Federal originária e concretização de direitos fundamentais.
Bem por isso, a previsão na PEC 45 (artigo 8º), em andamento no Congresso Nacional, no sentido de prever, por meio de Lei Complementar, uma cesta básica nacional de alimentos, com alíquota zero de IBS e CBS, não se trata de uma benesse, mas o simples e natural cumprimento do texto constitucional.
Aliás, não se trata de mera interpretação deste singelo autor, o Supremo Tribunal Federal, em recente julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.363/MG, da relatoria do ministro Luiz Fux, afirma expressamente, em seu voto, que “não estamos diante de um mero benefício”, pois, “ao reduzir a carga tributária da cesta básica, o Estado de Minas Gerais dá densidade ao direito fundamental à alimentação, que inadmite restrições”.
Vejamos trecho da ementa: “In casu, está-se diante de gasto tributário destinado a fomentar operações com a cesta básica, o que significa dar concreção ao direito fundamental à alimentação (artigos 6º, caput; 7º, IV; 208, VII; e 212, § 4º, CRFB), cuja restrição, em regra, é juridicamente impossível”.
Entendemos, inclusive, que há de se atentar não somente aos alimentos previstos na cesta básica, mas à toda a cadeia, daí a importância de um regime diferenciado ao agronegócio com redução de alíquota em 60% e 0% para alguns produtos (artigo 9º).
Tais previsões, entre outras (crédito da não cumulatividade, ressarcimento, exoneração de exportação), serão fundamentais para que se cumpra o texto constitucional em sua plenitude sob pena de eventual inconstitucionalidade até mesmo por proteção insuficiente à luz do princípio da proporcionalidade.
Até porque, tratando-se de direitos fundamentais, as conquistas já consumadas, tal como a tributação diferenciada e favorecida, sobretudo, com redução ou mesmo exoneração, de produtos vinculados à cadeia do agronegócio, notadamente, os alimentos, temos o impeditivo do retrocesso social, o qual proíbe que conquistas já alcançadas sejam desconstituídas ou restringidas, de modo que o Estado se obriga não somente a efetivá-las, mas, também, fica obrigado a preserva-las, não podendo frustrar mediante medidas, diretas ou indiretas, que faça a supressão total ou parcial, sob pena de violar a Constituição Federal.
Em síntese, o que se pretende, com este singelo texto, é reafirmar a necessidade de se respeitar o tratamento favorecido e diferenciado ao agronegócio, principalmente, quanto à cadeia voltada à produção de alimentos, de tal sorte que as medidas, até o momento propostas perante a PEC 45, quanto à reforma tributária, em momento algum, podem ser tidas como benesses, refletindo unicamente o determinado pelo texto constitucional.
Mais do que isso, cabe um alerta: tratando-se de direitos fundamentais, e diante da vedação ao retrocesso social, nem mesmo emenda à constituição tem o condão de gerar restrição ou redução daqueles, de sorte que o aumento de carga tributária e de complexidade ao setor, sobretudo, para os alimentos, inegavelmente poderá ser declarado inconstitucional.
Isto não quer dizer que o setor não contribui do ponto de vista do pagamento dos tributos. Ao contrário, atualmente, em comparação ao PIB, levando em consideração sua cadeia e não somente a etapa da atividade rural, a arrecadação está próxima da sua representatividade do PIB. Sem contar, ainda, a geração de riqueza e de divisas ao país que geram arrecadação de tributos em decorrência de outras atividades como setores de construção civil, comércio e prestação de serviços.
V. CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação no Agronegócio: algumas reflexões. Londrina: THOTH, IBDA, CONJUR, 2023. Cf ainda: https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio; https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/direito-agronegocio-reforma-tributaria-dialogo-agronegocio; https://www.conjur.com.br/2020-ago-14/direito-agronegocio-reforma-tributaria-cbs-agronegocio
CARROZZA, A. Lezioni sul diritto agrario. Elementi di teoria generale. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1988. V. ZIBETTI, Darcy Walmor. No Brasil: Estudar Direito Agrário é preciso. https://www.ubau.org.br/site/no-brasil-estudar-direito-agrario-e-preciso/
RODRIGUES, Roberto. Agro é Paz. Piracicaba: ESALQ, 2018.
– CALCINI, Fábio Pallaretti. Limites ao Poder de Reforma da Constituição. Campinas: Millennium, 2008.
– STF, ADI 5363, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 12-09-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 03-10-2023 PUBLIC 04-10-2023.